Todos sabemos que como atividade administrativa instrumental, o processo de contratação pública tem como premissa algo que se convencionou denominar de dever geral de licitar.[1] Isso porque, conforme o inciso XXI da Constituição Federal, “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública”.
Para viabilizar a licitação nos termos propostos por este inciso, é indispensável a existência de disputa entre os concorrentes ou, ainda, uma pluralidade de objetos. É que, a isonomia só terá espaço se houver diferentes licitantes aptos a prestar determinado objeto, a partir de critérios objetivos de julgamento, garantindo-se a competição e, consequentemente, a contratação da proposta mais vantajosa. Do contrário, não haverá sequer espaço para buscar a isonomia.[2]
Assim, muito embora a regra geral pareça sinalizar um dever jurídico geral de licitar, o próprio constituinte no inciso XXI, do artigo 37 resguardou à norma infraconstitucional a competência de prever as hipóteses em que esse dever não se aplica. É dizer, a própria Constituição, reconhecendo a existência de situações de fato que possam justificar,[3] o afastamento do dever de licitar, excepcionou a necessidade de se realizar licitação ou, mais acertadamente em nosso sentir, reconheceu a sua inviabilidade.
Veja o que se retira do inciso II do artigo 25 da Lei nº 8.666/93, por exemplo, quando menciona que é “inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização.” Isto é, será inexigível e licitação quando houver a impossibilidade de se definir critérios objetivos de cotejo da solução mais vantajosa para a satisfação do interesse público, em razão das características singulares que revestem o serviço, bem como, das competências notório especializadas de seu prestador.
A contratação de serviços técnicos profissionais especializados e de natureza singular possui aferição complexa e nada tem haver com a lógica de disputa, já que é possível, nesta hipótese, haver uma pluralidade de pessoas “capazes” de prestar o serviço pretendido pela Administração, porém, como nota distintiva, ausentes estão os critérios objetivos para cotejá-lo, pressupondo grau de subjetividade que inviabiliza a competitividade e, por consequência, a Licitação.
Assim, nos termos do artigo 25, inciso II, da Lei 8.666/1993, por exemplo, poderão enquadrar-se como inexigíveis os serviços técnicos especializados, de natureza singular, enumerados no artigo 13 da Lei Geral de Licitações e Contratos, por configurarem hipótese de inviabilidade de competição.
Em resumo: sempre que o serviço for de natureza singular, o que, por si só, exige a prestação por profissionais altamente qualificados, a contratação – como regra – se fará por inexigibilidade, em virtude da situação fática de inviabilidade de se realizar processo competitivo.
Assim, são três os requisitos legais à contratação por inexigibilidade de acordo com o artigo 25, II, da Lei Federal nº 8.666/93, dois deles relacionados ao serviço e um ao prestador: 1) serviços técnicos, profissionais e especializados; 2) natureza singular desses serviços e 3) notória especialização técnica do prestador.
O primeiro requisito, que exige que os serviços sejam técnicos, profissionais e especializados, permite a conclusão de que basta a sua previsão no art. 13 da Lei 8.666/1993, ou comprovação desta natureza, uma vez que o rol do artigo em comento é exemplificativo, para que o serviço seja contratado diretamente por esta premissa. O caráter técnico do serviço, por assim dizer, “decorre da aplicação de determinado conhecimento teórico, envolvendo metodologia rigorosa ou procedimento formal para sua consumação, mediante uso de habilidade ou capacitação peculiares”. Para ser reconhecido como profissional, o serviço “deve ser objeto de uma profissão regulamentada”. Por fim, para que se reconheça a sua especialidade, “o êxito do serviço deve depender do emprego de habilidades não disponíveis a qualquer profissional.”[4]
O segundo requisito trata da natureza singular do objeto e compreende as complexidades do objeto que não permitem a contratação de qualquer profissional. Isto é, pressupõe especificidade, complexidade e sofisticação. Este requisito, então, não diz respeito à possibilidade de apenas um fornecedor executar os serviços (exclusividade), mas sim da complexidade acima do normal do objeto que impossibilita a concorrência. Em outras palavras, “singular é a natureza do serviço, não o número de pessoas capacitadas a executá-lo”, caracterizando-se “como uma situação incomum, impossível de ser enfrentada satisfatoriamente por qualquer profissional ‘especializado’. Envolve os casos que demandam mais do que a especialização, pois apresentam complexidades que impedem obtenção de solução satisfatória a partir da contratação de qualquer profissional (ainda que especializado).”[5]
O terceiro requisito trata-se da notória especialização técnica do prestador, que, considerada a natureza singular do objeto a ser prestado, exige “a prestação por pessoa – física ou jurídica – com qualificação à altura”. Assim, o profissional notório especializado é “um profissional destacado em sua área de atuação, para que haja a segurança de que ele resolverá a contento determinado serviço técnico profissional especializado de natureza singular.”[6]
Ora. Esse é exatamente o caso de consultoria para estruturação de Sistema de Compliance ou Programas de Integridade.
Como se não bastasse todos os argumentos técnicos trazidos, esse é o entendimento já sedimentado pelo Tribunal de Contas da União nas súmulas 39, 252 e 264 e, mais recentemente, na Primeira Câmara do Tribunal de Contas da União, quando no acórdão 10940/2018,[7] reconheceu expressamente que a singularidade exigida por lei pressupõe “complexidade e especificidade” dos serviços técnicos, a qual não deve ser confundida com unicidade, exclusividade, ineditismo ou raridade desses serviços.
Assim, não basta uma habilitação genérica para o desempenho de serviços técnicos profissionais, é preciso que haja habilitação específica, vinculada a determinada capacitação intelectual e material (de conteúdo), que o diferencie dos demais profissionais.
Isso é justamente o que ocorre na contratação de serviços para implementação de Programas de Integridade e Compliance na Administração Pública.
Mas agora vamos ao Pregão, para tentar decifrar o motivo pelo qual – equivocamente – os administradores públicos optam por esta modalidade (no mínimo temerária e ilegal à contratação do objeto pretendido) para contratar os serviços altamente singulares e especializados de estruturação de programas de integridade.
O Pregão, instituído pela Lei Federal nº 10.520/2002, é modalidade de licitação para contratação de serviços ou aquisições de bens comuns, cujo critério de escolha é sempre o menor preço.[8]
Nesse sentido, a incidência da modalidade de Pregão irá depender da natureza do objeto a ser licitado que, obrigatoriamente, deve ser qualificado como bem ou serviço comum. Por decorrência lógica, portanto, uma vez que o objeto não é considerado bem ou serviço comum, a modalidade deve ser afastada de plano, pois ausentes seus pressupostos de validade.
A Lei classifica bens e serviços comuns como aqueles que possuem (1) padrões de desempenho e qualidade, (2) que possam ser objetivamente definidos pelo edital, (3) mediante especificações usuais do mercado.
Assim, não será qualquer bem ou serviço que poderá ser objeto da modalidade Pregão, devendo o administrador público, a partir da análise das condições concretas da contratação, notadamente em relação às especificações usuais e objetivas do objeto, aplicar a modalidade de licitação mais adequada, ou ainda, compreender que em alguns casos, mais especificamente em relação à serviços técnicos complexos e singulares, prestados por profissionais altamente capacitados, sequer é viável o processo de competição, menos ainda, na modalidade Pregão.[9]
Então qual a melhor forma de se contratar a estruturação de sistemas de Compliance pela Administração Pública e se atender ao critério de vantajosidade almejado pela Constituição e pelas legislações que regem o processo de contratações pela Administração Direta ou Indireta?
A resposta desta pergunta, demanda entender brevemente do que se entende por programas de integridade.
O próprio ordenamento jurídico ao expressar o que se espera de Programas de Integridade e Compliance, denota que se trata de um instituto altamente complexo e singular e que não pode ser aferido segundo critérios objetivos comuns, pois altamente complexos e que demandam especificação e aprofundamento caso a caso. Não há, portanto, nenhum padrão ou modelo a ser seguido pela Administração Direta ou Indireta.
É que a estruturação integral de um Programa de Integridade e Compliance, para que atenda aos padrões mínimos exigidos precisa ser realizada em várias fases, cada uma delas com inúmeras etapas e com a necessidade de monitoramento contínuo desta implementação. Estas fases contemplam, dentre outros, Mapeamento e Coleta de Dados, Análise de Maturidade, Elaboração de Matriz de Riscos, Desenvolvimento e Revisão de Políticas e Procedimentos, estruturação de processo Canal de Ouvidoria e Denúncias, Monitoramento, Remediação e Capacitação e Treinamento.
Ao contrário do senso comum de que Compliance seria o termo proveniente do verbo em inglês “to comply”, que significa estar em conformidade ou cumprir com o que foi proposto, a estruturação de um Sistema de Integridade e Compliance vai muito além da conformidade.
Assim, programas de Integridade e Compliance devem ser estruturados de acordo com a realidade interna de cada estrutura, já que estas possuem suas próprias particularidades, políticas e práticas. Como se pode notar, é indubitável a natureza singular do objeto, que se exprime e se comprova mediante as próprias particularidades de cada órgão ou entidade, o que demanda conhecimento específico sobre a ordem jurídica que envolve o tema, suas necessidades, formas de atuação, e, portanto, exige necessário conhecimento técnico e especializado na área de estruturação de sistemas de Compliance, isto é, notória especialização na área e que deve ser empreendida sobre um serviço de natureza altamente singular. Diante dos argumentos trazidos, não resta alternativa senão a adequada conclusão de que a estruturação de um sistema de Compliance à realidade própria de cada órgão ou entidade da Administração Direta ou Indireta, trata-se de objeto que deve ser prestado por profissional notoriamente especializado, em que evidentemente é cabível a inexigibilidade. A licitação nestes casos, parece frustrar o interesse público e não o enaltecer e, a escolha da licitação, sob a modalidade de Pregão, para além de frustrar o interesse público e violar frontalmente a legalidade por meio da inadequação de seus pressupostos, beira, em nosso sentir, o absurdo. Em nome de uma suposta economia pelo critério do menor lance – à justificar uma questionável vantajosidade – se coloca o interesse público em uma verdadeira “roleta russa”.
Em tempos de imposição da cultura da integridade nas organizações, não se pode permitir a utilização de mecanismos inadequados à contratação de prestadores de serviços para estruturação de Programas de Integridade na Administração, sob pena de o próprio processo de contratação subverter a ótica do Compliance pela ausência de vantajosidade e de legalidade nos processos.
[1] Sobre este dever constitucional geral de licitar, impõe-se explicar que trata-se de um dever geral para situações comuns e genéricas de contratações públicas, eis que, conforme ver-se-á mais adiante neste estudo, em situações específicas cujos objetos não são comuns, mas sim singulares, prevalece a regra de exceção – regral geral para essas situações específicas – em que não há que se falar em imposição de licitação, mas sim, contratação direta.
[2] Em situações em que a licitação não é exigida ou é inviável, por não ser viável a análise objetiva do objeto, não há como se falar em isonomia.
[3] sobre o tema cf. CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de; ZILIOTTO, Mirela Miró. O Novo CPC e a motivação como dever de todos os sujeitos processuais: uma análise do dever de boa-fé e do princípio da colaboração. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, a. 19, nº 105, p. 65-84, set./out. 2017.
[4] OLIVEIRA, Gustavo Justino; SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Contratação de Serviços Técnicos por Inexigibilidade de Licitação. Curitiba: Zênite, 2015. p. 92-93.
[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17 ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 588.
[6] OLIVEIRA, Gustavo Justino; SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Contratação de Serviços Técnicos por Inexigibilidade de Licitação. Curitiba: Zênite, 2015. p. 102-103.
[7] Acórdão nº 10.940/2018 – TCU. Disponível em: . Acesso em 11/04/2019.
[8] Não se olvida a existência e aceitabilidade pelos tribunais pátrios da modalidade de Pregão Invertido, quando o critério adotado passa a ser o maior lance, contudo, essa modalidade não está prevista na lei, por isso, neste estudo, deixaremos de abordá-la.
[9] Assim, ainda que não se olvide que o termo bens e serviços comuns não é sinônimo de bens e serviços simples, sendo possível que determinados serviços complexos, desde que estabelecidos mediante padrões objetivos, com especificações usuais do mercado, sejam contratados pela modalidade Pregão, importante frisar que a possibilidade de contratação de serviços complexos por esta modalidade é exceção, justamente porque as variações técnicas de serviços complexos, usualmente, são diversas. Além disso, é difícil encontrar no mercado especificações usuais de serviços complexos. Serviços complexos não permitem fácil, rotineiro e corriqueiro acesso via de regra.