A Due Diligence de Integridade e o Grau de Risco de Integridade como fatores limitadores do relacionamento público-privado: questões polêmicas. Questão 2 (Parte II)

28 de agosto de 2019

A Due Diligence de Integridade e o Grau de Risco de Integridade como fatores limitadores do relacionamento público-privado: questões polêmicas. Questão 2 (Parte II)

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Qual o momento oportuno para se exigir o preenchimento de questionário de Integridade aos interessados em contratar ou manter relacionamento com a Administração Pública? É possível condição restritiva à participação em processos licitatórios, por exemplo?

Aqui existem dois cenários distintos: a) o primeiro deles se refere ao momento em que é possível exigir-se o questionário e, b) o segundo, refere-se ao momento em que esta exigência pode se tornar executável, do ponto de vista de exclusão do licitante/interessado do processo competitivo.

No que pertine ao primeiro questionamento, a resposta não demanda maiores conjecturas, por um simples fator, é possível se exigir o preenchimento do documento em qualquer das fases do procedimento: quando do cadastro de fornecedores; como declaração constante dos documentos que compõe a habilitação da empresa e, também, no momento da convocação para a assinatura do contrato. Exigir o preenchimento, portanto, é mera formalização da vontade administrativa em conhecer o seu futuro contratado, sem que com isso, decorra nenhum ônus aos licitantes ou interessados.

Agora, bastante distinta a análise e a pergunta objetiva realizada, quando miramos o momento em que é possível a exigência para fins de exclusão da participação do licitante/interessado, pois aqui derivam aspectos constitucionais e legais relevantes, vejamos.

Aqueles que defendem a inconstitucionalidade formal, o fazem aventando que a exigência dos questionários de integridade nas licitações, independentemente da fase, estaria violando a competência privativa da União para dispor sobre normas gerais de licitações e contratos, disciplinada no artigo 22, inciso XXVII, da Constituição da República de 1988. Isto é, as inovações normativas estariam criando uma condição especial mais restritiva, o que somente poderia ser veiculada por meio de norma geral, ou seja, novo diploma normativo de caráter geral, que previsse especificamente este critério como condição limitadora do relacionamento entre as partes.

Neste ponto, em minha análise, a exigência de questionários de integridade nas relações com a Administração Pública (Direta ou Indireta) não carece de constitucionalidade formal, já que, ao contrário dos que entendem que não haveria fundamento de validade da referida exigência em norma de caráter geral, a requisição de “indicadores de integridade”, vai exatamente ao encontro das diretrizes básicas da Lei Geral de Licitações (Lei 8.666/93) e da nova Lei das Estatais (Lei 13.303/16), que, como normas gerais aplicáveis respectivamente à Administração Direta e Indireta, deixam evidente seu apego e aderência aos princípios da moralidade e da probidade administrativa, conferindo, portanto, caráter constitucional à exigência.

Em suma, sob o aspecto formal não há nenhuma inconstitucionalidade, pois as Leis Gerais que regem as contratações pretendidas ratificam os princípios da legalidade, moralidade e probidade administrativa que balizam a referida exigência. É que, se a requisição está em estrita concordância às diretrizes da norma geral, ainda que esta não tenha disciplinado de modo expresso determinada obrigação – o que sequer é de sua natureza, já que as normas gerais disciplinam balizas, que serão melhor delineadas pela legislação específica sobre o tema -, não há que se falar em inconstitucionalidade.

A questão polêmica sobre a inconstitucionalidade da exigência, decorre da análise de seu fundamento material de constitucionalidade, quando da exigência de questionários de integridade como condição nos processos de contratação pública.

É que ao se tratar da inconstitucionalidade material, haveria restrição à competitividade do certame pela violação direta do artigo 37, inciso XXI, da Constituição da República Federativa do Brasil, que assegura a igualdade de concorrência entre todos os participantes.[1] É aqui que a questão ganha relevância, na análise das fases em que a exigência é executada (ou executável).

Obviamente que, para fins de participação no certame, ou seja, quando a exigência é solicitada como condição excludente de participação no processo competitivo, há direta e evidente violação do caráter material previsto na Constituição. Não se pode permitir, por lei ou ato normativo posterior, de caráter não geral, a previsão de condições restritivas de competição. Isso viola a própria lógica do processo concorrencial e de obtenção da proposta mais vantajosa para a Administração. Ou seja, não se pode, por um indicador de risco da futura contratação, impedir que um licitante/interessado participe livremente do processo competitivo, sob pena de inconstitucionalidade material da exigência[2].

A referida inconstitucionalidade, em minha análise, ganha contornos mais evidentes com a objetivação de alguns conceitos, cuja perspectiva gostaria de analisar nesta resposta: a) Qual o conceito de risco? b) os critérios da due diligence são pautados pela Administração ou por critérios aferíveis dentro de um contexto dialógico (de participação com o particular); c) por fim, os critérios da due diligence são fixados previamente e abertos ao contraditório em sua formação, ou exigidos do particular e, eventualmente, conferido contraditório posterior?

Essas são questões fundamentais à confirmação da inconstitucionalidade da exigência para fins de exclusão de participação do certame competitivo. Vejamos objetivamente:

  1. O conceito atual de risco “envolve a quantificação e qualificação da incerteza, tanto no que diz respeito às ‘perdas’ como aos ‘ganhos’, com relação ao rumo dos acontecimentos planejados, seja por indivíduos, seja por organizações”[3].  O próprio Tribunal de Contas da União define risco como sendo a “possibilidade de ocorrência de um evento que afete adversamente a realização de objetivos”[4] e ratifica em seu Referencial de Gestão de Riscos quando assevera que os riscos são “o efeito da incerteza sobre objetivos estabelecidos. É a possibilidade de ocorrência de eventos que afetem a reali- zação ou alcance dos objetivos, combinada com o impacto dessa ocorrência sobre os resultados pretendidos”[5]. Não há dúvida, portanto, que ao balizar a exigência em indicadores de risco às contratações públicas, os “questionários de integridade” não podem ser utilizados como excludentes de participação do processo competitivo. Ora, seria não apenas ilegal, mas ilógico, pautar a exclusão de um pretenso licitante que pode inclusive determinar a proposta mais vantajosa à Administração, por critérios futuros e incertos que podem não se materializar. É dizer, a condição excludente não se sustenta pela natureza jurídica da própria exigência, pautada em uma incerteza que, não necessariamente, se materializará naquela contratação.
  2. A segunda questão por mim proposta consolida, ainda mais fortemente, a impossibilidade desta exigência como excludente de participação no processo competitivo. Ora, se por si só a incerteza já impediria a exclusão, o que dizer, portanto, dos critérios para definição de due diligence para possível materialização da incerteza? Veja que a definição de apetite de risco traz a noção de  “quantidade de risco em nível amplo que uma organização está disposta a aceitar na busca de seus objetivos (INTOSAI, 2007)”[6], ou seja, o critério para se definir o apetite de risco é discricionário e pode variar de uma organização para outra. É dizer, compelir o particular (licitante/interessado), como condição de participação nos processos competitivos da Administração, a estar aderente ao apetite discricionário de todos os entes/entidades em que possua interesse em se apresentar como concorrente é algo que, para além de não parecer razoável, traria inúmeras distorções à isonomia. Exemplifico: imaginemos que em uma estatal, um dos critérios para aferição do nível de integridade seja a existência de “política de consequência ao código de conduta” e, em outra, isso não integre o questionário de integridade como condição de aferição do nível de risco e aderência empresarial; nestes casos, vislumbra-se claramente que as exigências seriam tão díspares e inerentes ao apetite de risco de cada uma das estatais que sob o aspecto de competição isonômica ficaria quase impossível a um particular estar plenamente aderente à todas as exigências estipuladas nos diversos “apetites de riscos” das Estatais nas quais participa de processos competitivos e, essa quebra de isonomia concorrencial, é outro fator determinante para a inconstitucionalidade da exigência.[7]
  3. Por fim, como os critérios da exigência são definidos com base no apetite de risco definido pela Administração, sequer é dado ao particular a possibilidade de participar da formação da “vontade estatal” em excluí-lo do processo concorrencial, pois os critérios de “due diligence” não são passíveis de impugnação por sua própria natureza jurídica. É dizer, para além de todos os aspectos que justificam a análise de inconstitucionalidade da exigência, ainda este último, complementa a assertiva, pois justifica condição restritiva e excludente de participação, sem que os critérios que fundamentam tal exclusão sejam passíveis de insurgência pelo particular. Ainda que fosse dada, portanto, possibilidade de impugnação ou recurso posterior à exclusão, isso poderia conferir um simulacro de legalidade e que, após já definida a exclusão por critérios de não atenção à requisitos discricionários de risco, submeteria o particular a um “double-check” de conformidade, sem a mínima chance de revisitação dos fatos que ensejaram sua classificação.

 

Importante. Em uma leitura apressada desta orientação objetiva, poder-se-ia imaginar que a opinião aqui externada seria que a exigência é – em todos os casos – inconstitucional. Ora, isso não corresponde a realidade. Fica claro de tudo o que foi aqui exposto que a exigência de “questionários de integridade” (ou ainda, de programas de integridade) como condição de participação no processo competitivo é inconstitucional, porém, não há nada de inconstitucional nesta mesma exigência para fins de contratação, é dizer, quando já houve a seleção da proposta mais vantajosa adjudicada a um dos licitantes do processo. Aqui o preenchimento de “questionários de integridade” (ou ainda, para ampliar o escopo desta análise, a implementação dos Programas de Compliance) é  exigida como obrigação contratual, e não como condição de habilitação ou participação. Em outras palavras, não se trata de uma condição à participação no certame, mas sim uma obrigação que deverá ser concretizada após a assinatura do contrato. Assim, qualquer empresa poderá participar de certames licitatórios, e os critérios de risco avaliados no preenchimento do documento servirão para reforço de gestão contratual ou, ainda, exigências de implementação de algumas condições mitigadoras do risco avaliado, como por exemplo, a obrigatoriedade de implementação de programa de compliance, reforço aos controles internos ou outras atividades de submissão a um maior rigor na fiscalização contratual.

 

[1] “Art. 37, inciso XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 outubro de 1988. Disponível em: . Acesso: 29 jun. 2018.

[2] E que não se diga que o artigo 58, inciso I, da Lei 13.303/16 autoriza expressamente tal exigência como condição excludente de habilitação, pois é claro da leitura do referido inciso que o objetivo de sua redação é pautar a razoabilidade da exigência de documentos relativos à habilitação jurídica do licitante e não dá “carta em branco” ao regulamento de licitações para criar condições excludentes distantes da norma constitucional que preza pela isonomia concorrencial nos processos competitivos. O artigo 37, XXI da CF, acima transcrito é claro ao estabelecer que a Lei deve assegurar igualdade de condições à todos os concorrentes, e não o contrário.

[3] INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Guia de orientação para gerenciamento de riscos corporativos. São Paulo: IBGC, 2007. p. 11.

[4] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Gestão de Riscos. Avaliação da Maturidade. SEGECEX, ADEGECEX, SEMEC. 2018. .

[5] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Referencial básico de Gestão de Riscos. SEGECEX, ADEGECEX, SEMEC. 2018. .

[6] TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Referencial básico de Gestão de Riscos. SEGECEX, ADEGECEX, SEMEC. 2018. .

[7] Deixo de considerar ainda, pois estamos a tratar de uma situação objetiva e com a premissa da exigência para fins de probidade e ética relacional, a utilização de critérios distintivos (vinculados ao apetite de risco) pelas Estatais, para excluir “legalmente” determinadas empresas do processo competitivo, sem que isso fosse revisitado pelo judiciário em razão de albergar o mérito da análise administrativa.