Há vacina contra o patrimonialismo? O Compliance, a terceira lei de Newton e a cultura do “Jeitinho” que aniquila direitos fundamentais no país

26 de janeiro de 2021

Há vacina contra o patrimonialismo? O Compliance, a terceira lei de Newton e a cultura do “Jeitinho” que aniquila direitos fundamentais no país

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Assistimos nos últimos dias a uma proliferação de notícias sobre o “fura-filas” no protocolo de vacinação da Covid-19 em todo país. As situações? As mais bizarras! Do secretário de saúde que vacinou a esposa alegando proteger o “grande amor de sua vida”, às jovens irmãs médicas, distantes da linha de frente da doença e com nomeações para cargos de gestão de projetos que datavam o dia anterior e posterior à sua imunização.

O que tornam os episódios ainda mais representativos e graves é que, na maioria das vezes, a conduta de “furar a fila” da vacina, veio acompanhada do devido registro nas redes sociais dos respectivos furões, com hashtags que escancaravam o quão eram “privilegiados”.

A terceira Lei de Newton, para qual toda ação corresponde a uma reação, ilustra o que vem ocorrendo na gestão pública brasileira nos últimos anos. Reações desconexas, para mazelas crônicas do Estado se somam a tentativas reiteradas de burlar o Estado de Direito por meio de justificativas “sempre” fáticas, que produzem um emaranhado de desvios éticos que aniquilam direitos fundamentais. É a face mais cruel do patrimonialismo, que prioriza “os amigos do Rei” aos que mais necessitam.

Há claramente – na prática – uma forte tendência patrimonialista, potencializada pelo estamento burocrático do Estado brasileiro que, ao invés de legitimar a ação estatal pela ética e pelo procedimento, converte sua atuação em condutas personificadas e ineficientes.

Em meu sentir, como já mencionado em minhas últimas obras sobre Compliance e Controles Internos, o modelo de gestão atual é esquizofrênico e para ele, a solução não pode ser paliativa, explico. Vivemos em um modelo atrelado a práticas patrimonialistas, com uma atuação voltada a interesses pessoais, sob um estamento burocrático falido e com “novas” orientações gerenciais que aprofundam as desigualdades em nome do “bem-comum”.

E é aqui, com maior ênfase, que entendo que o Compliance Público se torna fundamental às mudanças e a uma ratificação do conceito de perpetuidade da integridade como norte racional de qualquer Governo, para consolidação de uma cultura ética afastada do “jeitinho brasileiro” de governar.

Para que isso aconteça, já dissemos em textos anteriores, o Programa de Integridade Público não pode ser amesquinhado, diminuído, resumido pela ideia de conformidade (isso é o básico em um país de normas positivadas como o nosso); para frear a esquizofrenia estatal é preciso ir além, traçar uma metodologia séria e objetiva de Mapeamento e Coleta de Dados, Análise de Maturidade da Gestão, Gerenciamento de Riscos, Políticas e Procedimentos aderentes à realidade da Instituição, independência dos Canais de Ouvidoria, treinamentos contínuos de todos os envolvidos, e principalmente, a efetivação do “Tone from the top” (expressão em inglês que traduz a noção de que o exemplo vem de cima).

Em se tratando do processo de vacinação, fica muito claro o Estado esquizofrênico de coisas instaurado no país, não apenas pelas declarações do Presidente da República e de seus Ministros, contraditórias entre si e em sua maioria negacionistas das razões científicas da imunização e da própria doença, mas principalmente porque não se tem uma pauta mínima de racionalidade a conduzir o “Tone from the top” na Administração Pública, a direcionar as condutas dos gestores, a frear seus interesses egoísticos e a limitar sua discricionariedade na linha tênue entre o agir ético e a imoralidade. Em sua grande maioria, não há direção ética pelos Governos e, com isso, não há efetivamente um plano a ser cumprido, que não seja o plano dos “donos do poder”.

A alteração de cultura na Administração Pública só será efetivamente conduzida a caminhos que enalteçam o interesse público, quando as pautas de integridade estiverem bem definidas em um efetivo Compliance Público, conduzido não apenas pela lógica de legalidade estrita (que hoje permite um cem número de desmandos no país), mas pelo postulado da legalidade substancial ou juridicidade, de justiça social, considerando os relevantes princípios da realidade e da moralidade, estampados respectivamente nos atigos 22 da Lei 13.655/17 (LINDB) e 37 da Constituição Federal.

Compliance não é tema da “moda”, ao contrário, em um país como o Brasil, é tema necessário à concretização de direitos fundamentais.

Não há Compliance efêmero, quando o que se está em jogo é uma tentativa de alteração do histórico jeitinho brasileiro, de retirar do dia a dia da Administração a festejada frase do “sempre foi feito assim” ou equivalentes como “foi para proteger o grande amor da minha vida”, de dotar a ação do gestor de um mínimo ético previsível; em suma, o único remédio para a esquizofrenia estatal é o entendimento pelos gestores de que integridade vale à pena. A vacina para frear o vírus do patrimonialismo é, sem dúvida, um Compliance Público efetivo.