O Metaverso e os desafios do compliance.

17 de janeiro de 2022

O Metaverso e os desafios do compliance.

Escrito por

O conceito de Metaverso é inovador, quase uma proposta de imersão em filmes que, há pouco tempo atrás, eram considerados de ficção científica; traz consigo um conteúdo imaginário e futurista, que propõe uma conexão entre o mundo real e o virtual, ou melhor, a vida em um mundo virtual, em razão de nossa real existência. É, portanto, um novo mundo (virtual), em que as pessoas são investidas em seus avatares digitais para realizar atividades relacionais diversas e até mesmo negócios jurídicos, como por exemplo, adquirir propriedades, firmar os mais diversos contratos, realizar compras de varejo dentre outros.

O metaverso teve seu embrião no jogo Second Life, criado em 2003 e que simulava uma vida em sociedade, por meio de avatares; porém, naquela ocasião, o jogo não tinha sequer conexão virtual, é dizer, o usuário não tinha interação entre o mundo real e o virtual. Após sua criação, o Second Life expandiu e ganhou em seu ambiente virtual novos negócios, como a disponibilização de imóveis virtuais e, inclusive, uma plataforma de marketplace, cuja moeda própria poderia ser utilizada no ambiente virtual do jogo. Tempos depois, o Facebook inovou, trazendo uma proposta de plena interação entre os mundos real e virtual, em que as pessoas pudessem se relacionar entre si, interagir e negociar com empresas, marcas, comprar propriedades virtuais, ou seja, criando seu próprio mundo virtual, em paralelo à “vida real”.

Esse movimento foi atualmente incorporado e encampado por várias empresas como Google, Nike, Ralph Lauren, Itaú, Balenciaga, Vans, Gucci, Burberry, Stella Artois, Lojas Renner entre outras que já possuem bases relacionais e comerciais no metaverso. Já se transformou, portanto, em um novo canal de comunicação entre fornecedores e consumidores, muitos destes consumidores que, até o momento, não integravam a lista de contatos dessas empresas, o que demonstra uma das vantagens de se estabelecer neste novo universo, o aumento da abrangência e presença da marca com a consequente expansão de sua carteira de clientes, além da eficiência operacional e redução de custos com a operação neste novo ambiente.

Em 20 de dezembro de 2021, Dan Ciocoiu-Muntiu, diretor da Accenture Interactive, em entrevista ao Editorial Espanhol Palco23, alertou que a relevância do metaverso é de que gera novas necessidades e obriga que surjam novos modelos de negócios, redefinindo o conceito de propriedade e bens materiais. Já Liliane Tie Arazawa, community builder da Women in Blockchain Brasil, em comentário ao canal bloomberg linea, avaliou que o metaverso traz à tona problemas contemporâneos mundiais que ainda demandam solução dentro e fora do novo ambiente, mas também grandes chances, como foi o caso da criação da embaixada de Barbados, a primeira baseada em terreno virtual soberano, e que deve ter relevantes impactos sociais, já que no ambiente virtual há, segundo ela, maiores possibilidades de explorar a diplomacia digital e as riquezas de patrimônio cultural de alguns países.

A entrada dos Estados neste ambiente virtual, em meu sentir, traz duas importantes consequências:

a) a primeira, vinculada ao relacionamento com os cidadãos e facilitação de acesso a serviços e atividades administrativas. Neste sentido, Yulgan Lira, fundador e CEO da Colb, empresa com foco na tokenização de ativos financeiros, avalia que a entrada estatal no metaverso é natural já que, com o aumento de pessoas no ambiente virtual, o Estado precisará atender seus cidadãos onde quer que estejam, seja no recolhimento de impostos ou na certificação de documentos pela tecnologia blockchain, exemplos de serviços que podem ser oferecidos virtualmente.

b) a segunda, um necessário conhecimento do movimento ativo da plataforma para um mínimo de regulação e controle. Essa hipótese, ainda pouco discutida, é a que traz maior preocupação àqueles que acreditam que esta realidade virtual é um grande novo “negócio”, pois a depender do movimento dos Estados, as limitações impostas pela regulação e pelo controle nas interações virtuais travadas no ambiente do metaverso, podem representar uma redução de sua capacidade negocial e de geração de valor.

Contudo, o posicionamento dos Estados neste ambiente, em qualquer uma das hipóteses mencionadas, demandará tempo e investimento, pois precisarão, necessariamente, ultrapasar velhos paradigmas burocráticos e amadurecer o entendimento sobre o metaverso e a tecnologia blockchain, além de depender de uma atualização e renovação legislativa e administrativa que permita tal inserção.

Isso porque, alguns importantes questionamentos jurídicos surgem, como por exemplo: como se dará a realização de negócios jurídicos neste ambiente? Em nome de quem serão realizados? Qual a validade dos contratos firmados?
Esta avaliação, no atual cenário legislativo e normativo brasileiro, deve se dar pelo artigo 104 do Código Civil, que dispõe que para que haja validade o negócio jurídico deve preencher os requisitos de agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei. À partir disso, poderá se determinar se as relações travadas no metaverso são jurídicamente válidas ou não.

Os requisitos de objeto lícito, possível, determinado ou determinável e não impedimento legal, não geram maiores debates, já que não há qualquer impedimento para as atividades desenvolvidas no metaverso. Contudo, o requisito de se ter um agente capaz na relação jurídica travada é, dentre todos, o que traz maior dificuldade, já que é necessário garantir que as pessoas que estão realizando o negócio jurídico em ambiente virtual, ainda que por meio de seus avatares, sejam dotadas de persoalidade jurídica.

Para isso, alguns mecanismos já são reconhecidos como capazes de tal confirmação e de garantir a autenticidade e integridade dos contratos firmados, como no caso de assinatura eletrônica ou a assinatura digital, nas quais é possível se aferir a real identidade das assinaturas realizadas no ambiente digital e garantir validade ao ato jurídico. Há também a possibilidade de identificação facial ou digital no acesso a plataforma, por meio da câmera do celular ou sensibilidade da tela, o que garantiria a comprovação jurídica exigida em lei, dentre outras formas, inclusive, pela autenticação de assinatura com o uso da tecnologia blockchain.

Mas esta realidade virtual, cada dia mais presente, não será um desafio apenas para o ordenamento jurídico nacional, na delimitação das práticas e dos negócios jurídicos travados no ambiente virtual, mas principalmente para o controle estatal no uso dessas tecnologias, que, em razão desta nova plataforma, amplia o relacionamento interpessoal para cenários ainda pouco conhecidos e explorados, permitindo inúmeros desmandos, dentre eles, atos de corrupção.

É o caso, por exemplo, em que dois avatares em ambiente virtual e com o objetivo de obter vantagem indevida, agem em conluio com o objetivo de frustrar o caráter competitivo ou impedir a realização de uma licitação, ou ainda, quando um desses avatares, expressão virtual de um agente público, frauda o equiílbrio econômico financeiro de um contrato em razão da facilitação na concessão de um pedido de revisão contratual, por exemplo.

Como a Administração, por sua área de Compliance Público (ou não), deve agir diante desse cenário?

Ora, ainda que os delitos de corrupção ativa (crime comum) e passiva (crime funcional) sejam crimes formais, ou seja, que se consumam no momento em que o agente oferece ou promete vantagem indevida, independentemente de aceitação ou do dano, o difícil, nestes casos, é determinar se esses avatares agiram mesmo como expressão de seus paradigmas na vida real, pois apenas assim haveria nexo causal para eventual punição.

Mas o que chama a atenção não é o caráter sancionador do possível ato de corrupção, mas trazer à discussão um ponto fundamental desta nova realidade que vivemos, qual seja, de preparar as áreas de risco, controle e compliance para essa nova cultura relacional e negocial, onde a ética será como princípio uma extensão dos seres humanos aos seus avatares.

As áreas de Compliance não podem (e nem devem) se permitir desconhecer esse novo universo, ao contrário, devem estudá-lo e conhecê-lo profundamente, a ponto de determinar que a cultura empresarial seja uma extensão e expressão direta da visão e dos valores da empresa do mundo real para o mundo virtual, bem como, do colaborador da vida real (aquele detentor de personalidade jurídica) para qualquer que seja a natureza ou forma de seu avatar (expressão jurídica dos atos de seu autor).

Os pilares de compliance devem todos estar orientados à essa nova realidade, desde o tone from the top, com o apoio da alta administração não apenas a exploração econômica do ambiente virtual, mas com o fomento de uma postura ética e razoável nesta plataforma; passando por uma detalhada análise dos riscos de integridade envolvidos nestas interações, com os respectivos planos de ação formadores das consequentes políticas internas de compliance, para dar resposta aos eventos derisco relacionados a este ambiente virtual; preparando o canal de denúncias para respostas eficazes aos relatos derivados das relações travadas neste novo cenário; realizando treinamentos específicos sobre o uso, limites e agir ético na interação com o metaverso dentre outros.

É dizer, a célebre frase de Mark Zuckerberg, ao apresentar publicamente o metaverso, de que nos próximos cinco ou dez anos alguns de nós estarão habitando mundos tão detalhados e convincentes como o “mundo real” é, ao mesmo tempo expressão da mais absoluta e célere capacidade de inovação tecnológica do ser humano, mas também, e principalmente, de que temos (no compliance) uma nova missão, a de acompanhar essa evolução, como uma alternativa de pauta ética à possivel incapacidade imediata de controle estatal.