Privacidade e o dever de informação de saúde no setor privado diante da Covid-19

3 de agosto de 2021

Privacidade e o dever de informação de saúde no setor privado diante da Covid-19

Escrito por e Laura Wihby Rezende

Atendendo à sua própria ontologia, não é incomum que a ciência jurídica enfrente situações em que as normas legais de um mesmo ordenamento colidam entre si, afinal, a imprevisibilidade da realidade fática torna impossível limitar a importância dos direitos a serem tutelados em cada situação específica. Este é o caso entre a privacidade de dados pessoais e o dever de informação, evidenciado durante a pandemia da Covid-19.

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei Federal n°13.709/2018) tem como objetivo preservar a privacidade dos dados pessoais e garantir aos seus titulares um tratamento de dados adimplidos pelos direitos fundamentais. Para tanto, os dados tutelados por esta lei estão sujeitos a condições de tratamento próprias a depender da classificação em que se enquadram, podendo ser classificados entre dados públicos, anonimizados, pessoais ou sensíveis. 

Os dados sensíveis são aqueles que não só identificam seu titular como também atribuem a ele informações relativas à convicção religiosa, origem étnica, orientação sexual e, dentre outras, dados de saúde. Portanto, toda referência ao estado de saúde de alguém deve ser tratada dentro das hipóteses legais dos dados sensíveis que, além de excluir o legítimo interesse, na grande maioria das vezes, encontram-se abarcados por duas bases legais dentro do setor privado: a do consentimento e a da tutela da saúde. 

Ocorre que essas duas hipóteses são muito diferentes entre si: enquanto o consentimento é condicionado à vontade e anuência do titular ao tratamento de seus dados, a tutela da saúde é uma base legal mais sólida, configurada como hipótese de exceção, de uso exclusivo dos profissionais da área de saúde ou entidades sanitárias. Apesar de divergentes, essas duas prerrogativas coexistem em harmonia: não é possível que o consentimento colida com a tutela da saúde em strictu sensu, pois a LGPD, em seu art.7°, VIII, desobriga esta última a obter a anuência do titular para o tratamento de seus dados.

Observadas as peculiaridades técnicas, cabe analisar como esta configuração normativa impacta o cenário pandêmico nacional: aqueles acometidos pela Covid-19 devem ter sua identidade publicizada dentro de ambientes controlados em prol da saúde da coletividade?

A LGPD é clara ao estabelecer que a tutela da saúde é imperiosa quando confrontada pelo consentimento, porém evidencia que esta hipótese só é possível caso o procedimento adotado seja realizado por profissionais da área de saúde, restringindo o espectro de sujeitos legitimados a utilizar desta prerrogativa. Deste modo, é necessário analisar quem está por trás da figura do controlador para que haja o tratamento adequado dos dados sensíveis coletados. 

Neste contexto, observa-se que diversos setores adotaram procedimentos de monitoramento interno para controle de transmissão, visando comunicar à coletividade os possíveis focos de contágio e, em alguns casos, divulgar a identidade dos vetores da doença, cujo diagnóstico detectou a presença do vírus. Considerando a análise acima, pode-se concluir que a identificação pessoal só pode ocorrer sem o consentimento do titular caso o tratamento tenha sido realizado em situação específica de tutela da saúde, por profissional habilitado, como nos casos em que os médicos ocupacionais de uma empresa divulgam os nomes daqueles acometidos pelo Covid-19 em editais de testagens periódicas para o afastamento imediato e para alertar aqueles que possam ter tido contato sobre o risco ao qual foram expostos.

Caso este procedimento não seja realizado por profissionais incluídos na hipótese do art. 7°, VIII, não há o que se falar em tutela da saúde e toda a divulgação dos dados pessoais estará condicionada ao consentimento do seu titular: se não desejar, sua identidade e estado de saúde não poderão ser divulgados para a coletividade, podendo somente ser indicado seu local de trabalho, turno e área, para que aqueles que possam ter tido contato estejam cientes sobre potenciais focos de transmissão. Isso é o que vem sendo observado nas corporações que são informadas pelos próprios colaboradores sobre a contaminação após a positivação ao vírus: acatam à recomendação médica do afastamento imediato e divulgam internamente as informações relacionadas à área, turno e frequência do colaborador.

Por óbvio, esta restrição faz com que as informações sejam mais imprecisas e impossibilitem uma rastreabilidade totalmente segura, porém é necessária para garantir o direito à privacidade de dados que, se não observado, apresenta flagrante violação à lei. Além disso, em uma análise lato sensu do ordenamento brasileiro, há quem considere que condicionar a identificação do contaminado ao consentimento, ao passo que garanta o direito fundamental à privacidade, previsto no art. 5°, IX, pode representar um descaso com o art. 196 da carta constitucional que consagra o direito à saúde como universal, cuja garantia deve ocorrer: “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença

Na prática, o texto constitucional pouco colabora com a imposição de procedimentos concretos dentro da tutela de saúde, tida como norma abstrata, que é positivada dentro da LGPD através de regulamentação específica que, até o momento, não apresentou qualquer motivo para ser considerada inconstitucional. Além disso, a lei encontrou uma maneira de garantir dois direitos fundamentais, que devem ser tutelados com igual importância, observadas as condições exigidas por cada uma das hipóteses de tratamento previstas.

Para tanto, é de responsabilidade das empresas se adequar aos requisitos técnicos exigidos pela lei, além de estarem munidas de prerrogativas abarcadas pela LGPD acerca do tratamento adequado dos dados. Assim, se porventura encontrarem-se incorporadas pela tutela da saúde, poderão tratar os dados em caráter de exceção ao consentimento e, caso não seja essa hipótese, deverão observar a necessidade da autorização do titular, de modo a preservar seu direito à privacidade.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 27 jul. 2021.

BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>. Acesso em: 27 jul. 2021.

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1 Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.